segunda-feira, outubro 02, 2006

O Mau Pastor


A bizarra - para não dizer escandalosa - posição publicamente assumida pelo Cardeal-Patriarca de Lisboa, Dom José Policarpo, a propósito da questão do aborto, e que o meu amigo Corcunda oportuna e certeiramente criticou, é bem sintomática da grave doença que o vírus modernista provocou à Igreja em Portugal. Já aqui o disse anteriormente, e reafirmo-o agora, mesmo que tal possa parecer estranho a muitos fiéis católicos bem intencionados mas pouco alertados, que no episcopado nacional, sob uma aparência de conservadorismo, esconde-se um modernismo extremo, radical, frio, reflexivo e astuto, a roçar o cinismo puro, e por isso mesmo muito mais pernicioso e eficaz no transmitir da sua mensagem de abominação a tudo o que é verdadeiramente católico do que o modernismo exuberante e radical, misto de imoralidades chocantes e momices apalhaçadas, dos bispos do Norte da Europa e dos Estados Unidos.

De facto, o panorama que nos oferece correntemente a Igreja em Portugal é tudo menos brilhante, e vários são os factores que o comprovam, como por exemplo: a) o abandono quase por completo do porte do traje eclesiástico (indício exterior de uma grave laicização do clero, sem paralelo em qualquer outro país europeu, talvez com a excepção francesa); b) o atroz estilo de arquitectura religiosa minimalista pós-conciliar, de matriz herética protestante, pelo qual as dioceses nacionais têm sistematicamente optado na edificação de novas igrejas, transformadas assim em verdadeiros mamarrachos desprovidos da mínima dignidade, edifícios talvez próprios para as reuniões memoriais litúrgicas do "povo de Deus", mas não para a adoração de Deus através do Santo Sacrifício da Missa; c) a perpetuação dos abusos litúrgicos em boa parte das paróquias, os quais variam entre o simples mau gosto e a pura heresia, porém todos tendo em comum a desobediência obstinada às sucessivas recomendações feitas por Roma acerca da matéria; d) a adopção de um discurso doutrinário que varia entre um xaroposo humanitarismo filantrópico de matriz difusamente jacobina e um agressivo evangelismo político-militante inspirado no marxismo mais retrógrado e cavernícola, mas que se olvida sistematicamente dos fins últimos da Igreja, a saber, para além da glorificação de Deus, a santificação dos homens com vista à salvação das suas almas para a vida eterna (por exemplo, quem é que hoje em dia ainda prega sobre os novíssimos - morte, julgamento, céu ou inferno?); e, e) a completa marginalização a que o episcopado e o restante clero modernista e progressista português votaram a Missa Tradicional de rito latino-gregoriano - Portugal é o único país de maioria católica na Europa Ocidental, onde bizarra e absurdamente não é possível assistir à Missa tradicional em uma só das igrejas sob jurisdição do episcopado nacional, o que diz muito do grau de descatolicização que os nossos bispos atingiram. Deste último ponto, já falei largamente em anterior artigo neste espaço, para o qual remeto agora; acrescentaria tão-só que é eloquente o facto de o livro de autoria do actual Papa Bento XVI, "O Espírito da Liturgia", certamente a sua obra-prima, com um carácter vigorosamente tradicionalista, não ter uma edição portuguesa, já que nenhuma editora religiosa nacional, ou pelo menos próxima à Igreja, se dispôs a editá-lo, o que não deixa de ser muito estranho.*

Ora, em face do âmbito supra exposto, as palavras de Dom José Policarpo não nos devem causar espanto de maior, tanto mais que o Patriarca de Lisboa, conjuntamente com os seus pares Mahoney (Los Angeles), Lustiguer (Paris), Daneels (Malines - Bruxelas), Martini (resignatário de Milão) ou Kasper (Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade Cristã), é um membros mais radicalmente progressistas do colégio cardinalício e comporta-se como tal, preferindo com as suas palavras agradar mais a esse inimigo da alma que é o mundo do que defender a verdade cristã.

Posto isto, relembro uma vez mais parte do conteúdo da "Nota doutrinal sobre algumas questões relativas à participação e comportamento dos católicos na vida política", que tem como primeiros destinatários os bispos católicos, ainda que alguns aparentemente não a hajam lido:


"Assiste-se, invés, a tentativas legislativas que, sem se preocuparem com as consequências das mesmas para a existência e o futuro dos povos na formação da cultura e dos comportamentos sociais, visam quebrar a intangibilidade da vida humana. Os católicos, em tal emergência, têm o direito e o dever de intervir, apelando para o sentido mais profundo da vida e para a responsabilidade que todos têm perante a mesma. João Paulo II, na linha do perene ensinamento da Igreja, afirmou repetidas vezes que quantos se encontram directamente empenhados nas esferas da representação legislativa têm a “clara obrigação de se opor” a qualquer lei que represente um atentado à vida humana. Para eles, como para todo o católico, vale a impossibilidade de participar em campanhas de opinião em favor de semelhantes leis, não sendo a ninguém consentido apoiá-las com o próprio voto. Isso não impede, como ensinou João Paulo II na Carta Encíclica Evangelium Vitae sobre a eventualidade de não ser possível evitar ou revogar totalmente uma lei abortista já em vigor ou posta em votação, que “um parlamentar, cuja pessoal oposição absoluta ao aborto seja clara e por todos conhecida, possa licitamente dar o próprio apoio a propostas tendentes a limitar os danos de uma tal lei e a diminuir os seus efeitos negativos no plano da cultura e da moralidade pública"..

Neste contexto, há que acrescentar que a consciência cristã bem formada não permite a ninguém favorecer, com o próprio voto, a actuação de um programa político ou de uma só lei, onde os conteúdos fundamentais da fé e da moral sejam subvertidos com a apresentação de propostas alternativas ou contrárias aos mesmos. Uma vez que a fé constitui como que uma unidade indivisível, não é lógico isolar um só dos seus conteúdos em prejuízo da totalidade da doutrina católica. Não basta o empenho político em favor de um aspecto isolado da doutrina social da Igreja para esgotar a responsabilidade pelo bem comum. Nem um católico pode pensar em delegar a outros o empenho que, como cristão, lhe vem do evangelho de Jesus Cristo de anunciar e realizar a verdade sobre o homem e o mundo.

Quando a acção política se confronta com princípios morais que não admitem abdicações, excepções ou compromissos de qualquer espécie, é então que o empenho dos católicos se torna mais evidente e grávido de responsabilidade. Perante essas exigências éticas fundamentais e irrenunciáveis, os crentes têm, efectivamente, de saber que está em jogo a essência da ordem moral, que diz respeito ao bem integral da pessoa. É o caso das leis civis em matéria de aborto e de eutanásia (a não confundir com a renúncia ao excesso terapêutico, legítimo, mesmo sob o ponto de vista moral), que devem tutelar o direito primário à vida, desde a sua concepção até ao seu termo natural. Do mesmo modo, há que afirmar o dever de respeitar e proteger os direitos do embrião humano. Analogamente, devem ser salvaguardadas a tutela e promoção da família, fundada no matrimónio monogâmico entre pessoas de sexo diferente e protegida na sua unidade e estabilidade, perante as leis modernas em matéria de divórcio: não se pode, de maneira nenhuma, pôr juridicamente no mesmo plano com a família outras formas de convivência, nem estas podem receber, como tais, um reconhecimento legal. Igualmente, a garantia da liberdade de educação, que os pais têm em relação aos próprios filhos, é um direito inalienável, aliás reconhecido nas Declarações internacionais dos direitos humanos."

E finalmente, faço votos para que Sua Eminência, trave um pouco o seu afã progressista, e reflicta nestas palavras de Cristo, de quem deveria ser servidor exemplar:

"Seja este o vosso modo de falar: Sim, sim; não, não. Tudo o que for além disto procede do espírito do mal" (Mt 5, 37);

"Acautelai-vos dos falsos profetas, que se vos apresentam disfarçados de ovelhas, mas por dentro são lobos vorazes. Pelos seus frutos os conhecereis. Porventura podem colher-se uvas dos espinheiros ou figos dos abrolhos? Toda a árvore boa dá bons frutos e toda a árvore má dá maus frutos. A árvore boa não pode dar maus frutos nem a árvore má dar bons frutos. Toda a árvore que não dá bons frutos é cortada e lançada ao fogo. Pelos frutos, pois, os conhecereis" (Mt 7, 15-20);

"Mas, se alguém escandalizar um destes pequeninos que crêem em mim, seria preferível que lhe suspendessem do pescoço a mó de um moinho e o lançassem nas profundezas do mar. Ai do mundo, por causa dos escândalos! São inevitáveis, decerto, os escândalos; mas ai do homem por quem vem o escândalo!" (Mt 18, 6-7);

"Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a sua vida pelas ovelhas. O mercenário, e o que não é pastor, e a quem não pertencem as ovelhas, vê vir o lobo e abandona as ovelhas e foge e o lobo arrebata-as e espanta-as porque é mercenário e não lhe importam as ovelhas" (Jo 10, 11-13);

"Conheço as tuas obras: não és frio nem quente. Oxalá fosses frio ou quente. Assim, porque és morno - e não és frio nem quente - vou vomitar-te da minha boca" (Ap 3, 15-16).

JSarto

* Adenda - Informa-me um leitor por correio electrónico de que o livro “Introdução ao Espírito da Liturgia”, do Cardeal Joseph Ratzinger, foi objecto de uma edição portuguesa em 2001 - que eu desconhecia -, da responsabilidade das “Paulinas”, de Lisboa. Porém, averiguei que tal livro está esgotado há muito e não foi reeditado depois da eleição do seu autor para o Trono de São Pedro. E uma coisa não deixa de ser certa: as teses sustentadas pelo actual Papa em matéria litúrgica não parecem ter sensibilizado minimamente o nosso episcopado. De qualquer maneira, apresento as minhas desculpas pelo lapso.

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